Introdução
Não se fala em outra coisa: estamos vivendo uma crise de abastecimento e recursos naturais no Brasil e no mundo. Profetas de Facebook já decretaram que São Paulo ficará às moscas pela falta d’água. Estima-se que em 40 anos as reservas de petróleo acabarão[1] e, em 2050, mais da metade da população mundial não terá a quantidade mínima de água para suas necessidades básicas.[2] Enfim, na melhor das hipóteses, em poucos anos o planeta estará vivendo uma profunda crise de abastecimento. E o que a teologia cristã tem a dizer sobre isso?
É essencial entendemos o conceito de antinomia para lidarmos, à luz da teologia cristã, como o dilema da crise de abastecimento e as dimensões ecológicas da redenção. De maneira bem simplificada e correndo o risco de ser simplista, “antinomia”[3] é o termo usado para descrever a aparente contradição entre duas afirmações propostas no mesmo contexto. Na teologia, quando afirmamos que Jesus é inteiramente homem e inteiramente Deus, deparamo-nos com uma antinomia. Embora essas afirmações pareçam contraditórias, sabemos que são verdadeiras. Embora criem tensão quando anunciadas no mesmo contexto, sabemos que as Escrituras atestam ambas.
Propriedade da Criação
Quando discutimos ecologia sob a ótica da teologia, precisamos responder uma pergunta realmente muito simples: “De quem é a Terra?”. A resposta é uma antinomia: a Terra pertence a Deus (cf. Sl 24.1); a Terra pertence aos homens (cf. Sl 115.16). Embora pareça contraditório, essa é a resposta das Escrituras.
O problema todo começa quando uma das partes é rejeitada. Quando rejeitamos o fato de que a Terra pertence a Deus, a conclusão lógica é que o homem pode usar seus recursos da maneira que bem entender, satisfazendo todas as suas necessidades sem qualquer responsabilidade e cuidado. Tudo que fizer será legitimado pelo fato de que ele é dono e possuidor da criação.
Por outro lado, quando rejeitamos o fato de que a Terra pertente aos homens, a conclusão lógica é que o homem não possui direito algum sobre a Terra e que todo e qualquer uso dos recursos naturais é uma afronta a Deus, o verdadeiro possuidor da criação.
Essas conclusões podem parecer absurdas, mas se avaliarmos de maneira criteriosa as milhares de propostas de “desenvolvimento sustentável” e “proteção ambiental” encontradas nas páginas de jornais, debates políticos e ambientes acadêmicos, ora encontraremos indivíduos defendendo a primazia do desenvolvimento econômico e humano sobre a questão ambiental, ora encontraremos ambientalistas radicais (“ecoxiitas”), defendendo a proteção ambiental em termos quase religiosos, procurando invalidar todo e qualquer uso dos recursos naturais por parte do homem.
Portanto, a melhor resposta para o dilema contempla estas duas verdades: porque a Terra é dos homens, eles têm o direito de usufruir de todos os recursos da criação; porque a Terra é de Deus, esse usufruto deve ser responsável.
A Administração da Criação
A questão que se levanta, portanto, é como esse usufruto deve acontecer. O livro de Gênesis orienta como o homem deve relacionar-se com a criação. Genêsis 1.26-28 nos mostra que Deus imputou ao homem a responsabilidade de dominar (רדה) e subjugar (כבש) a criação – a teologia chama isso de “mandato cultural”.
O leitor desatento pode imaginar que esses versos legitimam as atrocidades que o homem vem cometendo na natureza, uma vez que os verbos “dominar” e “subjugar” têm uma conotação bem negativa para nós hoje.
Quando morava em Dallas, encontrei uma típica sulista norte-americana que em uma rápida conversa confessou, sem qualquer pudor, crer que o homem pode sim submeter animais a testes agressivos, inclusive matá-los sem grandes restrições (a caça esportiva é um hobby “louvável” na cultura norte-americana), pois ele recebera de Deus o domínio da criação. Ela também afirmou não acreditar nessa “coisa de aquecimento global”. Segundo ela, isso é conversa de ONG ambientalista que quer arrancar dinheiro das pessoas.
Para o azar dessa moça, não é esse o tipo de domínio e sujeição aos quais a Bíblia se refere. O verbo רדה (radah), traduzido como “dominar”, deve ser entendido em seu sentido de “administração”, isto é, o homem tem a responsabilidade de administrar toda a criação. O texto está falando que o homem deve funcionar como mordomo e gestor dos recursos naturais. O verbo כבש (kavash), traduzido como “subjugar”, traz a ideia de sujeição no sentido de que o homem é responsável por desenvolver a criação em todo o seu potencial para benefício próprio. Uma excelente paráfrase para Gênesis 1.28 seria: “Deus os abençoou e lhes disse: ‘Sejam férteis e multipliquem-se! Encham, administrem, desenvolvam a terra em todo seu potencial e usem seus recursos para o sustento de sua vida’”.
Esse mandato convida o homem a desenvolver a criação em todas as esferas: agrícola, tecnológica, cultural, social, política, econômica, etc. Assim, ao desenvolver novas tecnologias de cultivo, represar rios para produção de energia hidrelétrica, produzir alternativas aos combustíveis fósseis, expandir o conhecimento e a ciência, o homem cumpre o mandado cultural de seu Criador, ainda que não o reconheça.
Essa administração tem duas características básicas: é cooperativa e delegada. É cooperativa porque o homem não é capaz de criar processos naturais. Ele coopera com os processos naturais da criação. Ele pode arar a terra, mas não consegue fazer a planta germinar. Ele pode fertilizar um óvulo in vitro, mas não pode desenvolver um feto. Ele pode desenvolver técnicas de racionamento, distribuição e irrigação de água, mas não pode fazê-la cair do céu para encher os reservatórios. Ele desenvolve energia solar, mas não tem o poder de fazer o sol se levantar todas as manhãs. É verdade que o homem é capaz de controlar e até acelerar processos naturais, mas ele não tem poder de criá-los. Desse modo, o homem trabalha e coopera com Deus no desenvolvimento da criação. John Stott resume: “Devemos nos humilhar para reconhecer que nosso domínio sobre a natureza seria completamente improdutivo se Deus não tivesse feito a terra frutífera e se ele não continuasse a ‘dar crescimento’”.[4]
A administração também é delegada. E por ser delegada deve ser responsável. Como foi dito no início, o fato da Terra pertencer a Deus exige do homem responsabilidade, e essa responsabilidade envolve, dentre outros, conservação. Pela razão óbvia: ao destruirmos a criação e seus recursos naturais, estamos destruindo aquilo que não é nosso e acabamos, de forma tola, com tudo aquilo que sustenta a vida humana – ofendemos a Deus e estamos nos matando. Assim, em última análise, o cerne de todo o problema da crise de abastecimento, escassez de recursos naturais, poluição, crescimento urbano desorganizado, desmatamento, etc., é o fato de que na Queda (Gn 3), o homem reivindicou unilateralidade da posse e autonomia na administração da criação, deflagrando o cenário caótico em que nos encontramos.
A Dimensões Ecológicas da Redenção
A redenção oferecida na vida, morte e ressurreição de Cristo também diz respeito aos dilemas ecológicos. O primeiro elemento que salta aos olhos quando lemos as páginas do Novo Testamento é que Cristo era um carpinteiro (Mc 6.3) – isto é, a matéria prima de seu ofício era madeira, um recurso natural. Cristo mostra que é legítimo extrair da criação os recursos necessários para o desenvolvimento humano. Mostra também consciência ecológica e boa mordomia ao exigir que seus discípulos recolhessem as sobras da grande multiplicação de pães (de cevada) e peixes, afim de que “nada fosse desperdiçado” (Jo 6.12). Em Cristo vemos que o domínio do homem sobre a criação não deve ser orientado por ganância, mas para o suprimento das necessidades humanas.
Cristo demonstra ser o cumprimento perfeito do mandato cultural de dominar e subjugar a criação (Gn 1.26-28). Ele exerce domínio sobre os ventos (Mc 4.36-41); e embora possa ser argumentado que tal tenha sido possível por causa de sua deidade, chama a atenção o fato de que os discípulos ficaram maravilhados ao ver um homem dominando as forças naturais. Não estaria isso de alguma maneira relacionado ao domínio para o qual o primeiro Adão foi designado?[5]
Cristo também exerceu domínio sobre os mares caóticos (Mt 14.22-23), numa clara alusão ao mar caótico primevo de Gênesis 1.2[6] e em cumprimento ao mandato cultural, uma vez que ele não fala ao mar, mas simplesmente o coloca como estrado de seus pés e anda sobre as águas.[7]
No evento da pesca maravilhosa (Lc 5.1-11) é evidente que Cristo manifesta sua deidade claramente reconhecida na resposta de Pedro diante do milagre ocorrido (Lc 5.8). No entanto, o domínio sobre os peixes do mar, a ponto de reuni-los no lugar e momento certos com extrema precisão, pode perfeitamente refletir também o domínio delegado a Adão no princípio, conforme Gênesis 1.28: “Domine ele sobre os peixes do mar […]”.
Muitos outros exemplos neotestamentários podem ser citados, mostrando Cristo como o Adão perfeito que cumpre cabalmente o mandato cultural sobre a criação. Entretanto, o evento que tem maior significado teológico nos evangelhos é o relato da entrada triunfal em Jerusalém (Mc 11.1-10). Existe grande discussão entre teólogos acerca das razões pelas quais Jesus precisou utilizar um jumentinho “no qual ninguém jamais montou” (Mc 11.2). É óbvia, entretanto, a intenção de Marcos demonstrar que um homem, além de soberano sobre todos os homens, tem domínio sobre o mundo natural.
Finalmente, o apóstolo Paulo nos informa que toda a criação geme por causa dos efeitos da queda (Rm 8.19-23) e que está aguardando sua redenção final. Desde o dia em que o primeiro Adão reivindicou posse exclusiva e autonomia administrativa sobre a criação, todo o universo está sujeito ao pecado e o domínio perverso do homem tem gerado as mazelas ambientais que vemos em nossos dias.
A Igreja, portanto, enquanto aguarda a redenção final, o “novo céu e uma nova terra” (cf. Ap 21.1), e busca ser relevante para o mundo, deve seguir os passos de seu mestre Jesus, o padrão de administração dos recursos naturais, sendo promotora de medidas sustentáveis que propiciem o bem-estar humano, mas também a preservação do meio ambiente. Em outras palavras, é a agenda bíblica que oferece o melhor modelo de desenvolvimento sustentável. Pois só há sustentabilidade em qualquer processo de desenvolvimento humano se este pressupor que a criação pertence a Deus, e também aos homens.
Isaque Sicsú.
[1] http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/energia/conteudo_280677.shtml
[2] http://growingblue.com/water-in-2050/
[3] Para mais informações, consultar: ABBAGNANO, Nicola, Dicionário de Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 63-67.
[4] STOTT, John. Issues Facing Christians Today, Kindle Edition, Grand Rapids: Zondervan, 2006.
[5] Os milagres de Cristo geralmente atestavam sua reivindicação acerca de sua deidade (cf. João 20.20-31). Alguns, porém, foram feitos para manifestar sua perfeita humanidade e manifestar o que um homem sem pecado foi criado para fazer em virtude de seu papel como imagem de Deus, exercendo domínio sobre a criação. Para mais informações, consultar: MERRILL,Eugene. Everlasting Dominion: A Theology of the Old Testament, Nashville, B&H Academic, 2006. p. 169-174.
[6] Para mais informações sobre a Teologia do Mar Primevo, consultar: DAY, John, God’s Conflict with the Dragon and the Sea. University of Cambridge Press, 1985.
[7] É notável que Cristo tenha exercido domínio sobre o mar revolto colocando-o debaixo de seus pés, pelo fato de que o verbo כבש (kavash), traduzido como “subjulgar” em Gênesis 1.28, possui a conotação de “colocar debaixo dos pés” (cf. Gesenius’ Hebrew-Chaldee Lexicon of the Old Testament).