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ESBOÇO DO ARTIGO COMPLETO:

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Marcelo Berti

Antes de iniciarmos propriamente nossa análise dos Pais da Igreja do quarto século e anteriores a ele, é importante demonstrar um pouco da tradição textual grega do Novo Testamento, até por que, todas as versões foram produzidas a partir de cópias gregas dos autógrafos.

A. Considerações introdutórias à tradição grega do Novo Testamento

 

Até aqui muito foi dito sobre as versões antigas, que representam parte da história da tradução do texto do Novo Testamento para outros idiomas. Mas, não podemos deixar de lembrar que existiu uma tradição grega de manutenção do texto responsável pela produção de todas as outras versões. Essa tradição é fundamental, pois ela representa a língua em que originalmente foram escritos os autógrafos. Portanto, a mais fidedigna fonte de informações textuais que dispomos são os manuscritos gregos.

Craig A. Evans, em seu livro “Fabricating Jesus” cita os mais antigos papiros que preservam o evangelho de João. Dentre os citados, dois merecem nossa atenção, pois são significativos em diversas questões textuais relacionadas ao primeiro capítulo do Evangelho de João.

(1)     P66 (Papiro 66): Também conhecido como Papiro Bodmer II é datado no início segundo século. Trata-se do mais antigo testemunho textual do Novo Testamento e contém Jo.1.1- 6.11; 6.35b-14.26, 29-30; 15.2-26; 16.2-4, 6-7, 16.10-20:20, 22-23, 20.25-21.9, 12, 17.

(2)     P75 (Papiro 75): Também conhecido como Papiro Bodmer XIV e XV é datado no segundo século. É, em geral, concordante com P66 e P45. Originalmente deveria ter tido 144 páginas das quais 102 sobreviveram, ainda que em partes. Ambos os papiros são fundamentais para a crítica textual e são considerados quase decisivos em leituras divergentes no Evangelho de João.

Com essas informações em mãos, podemos nos lembrar que no período de produção de versões do Novo Testamento, o texto grego, idioma original do NT era mantido em regiões diferentes do mundo, e esse material é que servia de suporte para as versões posteriores.

Entretanto, no que refere-se ao idioma original do Novo Testamento, devemos nos lembrar dos Pais da Igreja de tradição grega, pois além de apresentarem suas leituras, também deixaram suas interpretações. É importante notar que, se nenhum manuscrito grego tivesse sobrevivido ao tempo, as citações dos Pais da Igreja seriam suficientes para remontar todo o Novo Testamento (METZGER, pp.86). Se considerássemos apenas Orígenes isso já seria quase possível (PAROSCHI, pp.67).

Portanto, voltaremos nossos olhos para os Pais da Igreja anteriores ao quarto século para observarmos como eles liam e interpretavam Jo.1.1 no idioma original do Novo Testamento.

B. Inácio de Antioquia

As informações sobre nascimento e morte de Inácio não são tão exatas como os dos Pais posteriores. Em geral, seu nascimento é atestado antes do ano 50, mas há quem defenda que teria sido por volta do ano 35 d.C. Sobre sua morte, o assunto também é controverso, pois há quem defenda que Inácio teria morrido ainda no primeiro século (97d.C), outros dizem que seria próximo ao ano 117 d.C. Seja como for, alem da proximidade temporal com os apóstolos, é possível ainda que ele tivesse sido ensinado pelo Apóstolo João. Se Eusébio está certo (História Eclesiástica, II, ii, 22), Inácio teria sido o terceiro bispo de Antioquia após Evódio e o Apóstolo Pedro. Se Teodoret está certo (Dial. Immutab., I, iv, 33a), o próprio Pedro teria apontado Inácio como possível bispo de Antioquia.

Inácio de Antioquia é provavelmente o mais antigo Pai da Igreja ao citar Jo.1.1. A primeira citação é assim declarada:

“Como podemos chamá-lo de mero homem, recebendo sua existência de Maria e não de Deus, a Palavra, o unigênito Filho? Pois, ‘no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Aos Tarsianos, Cap.6)

Em sua carta “Aos antiloquianos”, Inácio inicia sua carta com a pretensão de alertar seus leitores das distorções do cristianismo. Sobre isso ele diz:

“Mas, vocês receberam a doutrina dos apóstolos e acreditam tanto na lei como nos profetas. Assim vocês rejeitam os erros dos judeus e dos gentios, e não introduzem uma multiplicidade de Deus, nem ainda negam a Cristo debaixo da alegação da manutenção da unidade de Deus” (Aos Antiolquianos, 1)

Após essa declaração, Inácio passa a descrever a respeito da verdadeira doutrina de Deus e Cristo. Por isso, ele defende a unidade de Deus nas palavras de Moisés (Aos Antiloquianos, 2; cf. Dt.6.4), Isaías (Aos Antiloquianos, 3; cf. Is.44.6) e do Apóstolo João (Aos Antiloquianos, 4; cf. Jo.17.3). Para Inácio não existe como negociar essas informações pois elas são ensinadas pela Lei, Profetas e pelos Apóstolos. Mas, no que se refere ao Filho, Inácio quando o apresenta cita Is.9.6 como evidência de sua identidade com Deus. Ele também fala sobre sua encarnação (Aos Antiloquianos, 3 cf. Is.7.14, Mt.1.23) e paixão (Aos Antiloquianos, 3; cf. Is.53.7; Jr.11.19).

Após tantas informações em tão pouco espaço, Inácio pretende demonstrar que as verdades anunciadas pelos Profetas também é demonstrada pelo ensino apostólico de tal forma que eles não têm qualquer embaraço em defender a encarnação, ou paixão do verbo. Sobre isso ele diz:

“O Evangelista, também declara que o Pai é o único e verdadeiro Deus, mas não omite o que é concernente ao nosso Senhor, mas diz: ‘No princípio era o verbo e o verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele mesmo estava no início com Deus e todas as coisas foram feitas por meio Dele, e sem Ele nada do que foi feito se fez’. Com relação a encarnação do Verbo diz: O Verbo se fez carne e habitou entre nós’. E novamente: ‘Livro da genealogia de Jesus Cristo, o Filho de Davi, Filho de Abraão’. E os mesmos apóstolos que afirmam que existe apenas um Deus, também falam sobre o único Mediador entre Deus e os Homens” (Aos Antiloquianos, cap.4)

É interessante notar que tão cedo Inácio já teria falado sobre a relação da informação de que Deus é Um, mas que Cristo também é Deus e não outra entidade. Para Inácio, isso seria uma afronta à Lei e aos Profetas. Muito embora, nessas citações a divindade de Cristo tenha ficado implícito, a opinião de Inácio sobre o assunto não era. Observe o que ele diz: “Nosso Deus, Jesus Cristo, tomou carne no seio de Maria, segundo o plano de Deus” (Aos Efésios, 18,2). Em sua Carta aos Romanos, ele inicia assim:

“Inácio, à Igreja amada e iluminada segundo a fé e a caridade, de Jesus Cristo nosso Deus, deseja todo o bem e irrepreensível alegria em Cristo Jesus Nosso Deus”

É bem interessante que, mesmo sendo bem anterior a Tertuliano, Inácio também já tinha uma boa visão da Trindade:

“Procurai manter-vos firmes nos ensinamentos do Senhor e dos apóstolos, para que prospere tudo o que fizerdes na carne e no espírito, na fé e no amor, no Filho, no Pai e no Espírito, no princípio e no fim, unidos ao vosso digníssimo bispo e à preciosa coroa espiritual formada pelos vossos presbíteros e diáconos segundo Deus. Sejam submissos ao bispo e também uns aos outros, assim como Jesus Cristo se submeteu, na carne, ao Pai, e os apóstolos se submeteram a Cristo, ao Pai e ao Espírito, a fim de que haja união, tanto física como espiritual” (Aos Magnésios, 13, 1-2)

Ao que se pode ver com clareza é que bem cedo, a concepção da Divindade de Cristo já era declarada e uma visão da Trindade já esboçada, muito antes do Concílio que a oficializou como Doutrina do Cristianismo. Mas interessante é que mesmo Inácio já utilizava Jo.1.1 como evidência da divindade de Cristo em um ambiente em que defendia a Unidade do Mesmo com Deus. Portanto, um leitor de grego não viu uma outra entidade, ou um outro deus em Jo.1.1 e assim ensinou em conformidade com o ensino da Lei, Profetas e dos Apóstolos.

C. Irineu

Irineu é mais um daqueles Pais da Igreja cujas informações não apresentada em suas obras são, quando não escassas, conflitantes. Sobre seu nascimento não existe consenso: 115, 125, 130, 140 d.C. Diz-se que em sua juventude ouviu o Bispo Policarpo em Esmirna. Entretanto, sabe-se com certeza que durante a perseguição de Marcos Aurélio, Irineu era pastor da Igreja de Lion. Tornou-se Segundo Bispo da mesma cidade após o martírio de Pothinus. Durante o período de paz religiosa, focou seu trabalho entre as atividades pastorais, missionárias e apologéticas. O maior grupo de informações que temos a seu respeito, entretanto, são suas obras apologéticas, em geral direcionadas contra o gnosticismo. É famoso pela obra Contra Heresias. Irineu teria morrido por volta do ano 202 d.C., mas não se tem certeza sobre essa data.

Irineu faz duas citações de Jo.1.1, ambas na obra Contra Heresias. Em uma delas, ele tece alguns insights sobre a trindade:

“O Pai é sem dúvidas, sobre todos, e Ele é o Cabeça de Cristo; mas o Verbo é mediante todas as coisas, e Ele mesmo é o Cabeça da Igreja; enquanto o Espírito está em todos nós, e Ele é a água viva, que o Senhor garante àqueles que corretamente crêem Nele, e o amam, e sabem que há um Pai, que é sobre todos, por meio de todos e em todos” (Contra Heresias, Livro 1, cap.18, 2)

No entendimento de Irineu, na Trindade existe uma relação hierárquica do ponto de vista da funcionalidade de cada um. Fato comprovado pelas escrituras que o ensinam. Entretanto, para ele, a prova para a parte referente a Cristo como Deus é vista em Jo.1.1: “E sobre essas coisas, João o discípulo do Senhor, também testemunha quando nos fala no evangelho: ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus’.”

Além de Irineu ter a clara visão da divindade de Cristo, me é interessante o fato de que em uma citação tão curta, tantos nomes lhe tenha sido atribuído. Note que Jesus é chamado de Cristo, Verbo, Cabeça e Senhor. Diante disso, é evidente que, na mente de Irineu Jesus Cristo é Deus. Talvez essa afirmação soe um pouco sem fundamento, para tanto, observe que ele diz no capítulo 8, verso 5 da mesma obra:

“E ele se expressa assim: No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus; o mesmo estava no princípio com Deus (…) Tendo primeiro de tudo distinguido esses três – Deus, o princípio e a Palavra – ele novamente os une, de modo que ele apresenta a produção de cada um deles, isto é,  do Filho, a Palavra, e ao mesmo tempo demonstra sua união um com o outro com o Pai.. No princípio ele está no Pai, ao mesmo tempo que a Palavra está no princípio e além do princípio. Apropriadamente, então, ele diz: ‘No princípio era a Palavra’ por que Ele estava no Filho; “e a Palavra estava com Deus’ por que Ele estava no princípio; ‘e a palavra era Deus’ claro, por que aquele é gerado de Deus é Deus

Para Irineu, o defensor da ortodoxia cristã contra as investidas gnósticas, Jesus Cristo era Deus e Jo.1.1 era evidência desse fato. O fato de ler e escrever em grego e não encontrar a indefinição no substantivo anartro “Θεὸς” é mais uma evidência de que o texto não deveria ser lido assim. É verdade que alguém poderia dizer que ele era um herege e que lia o que intencionava ler nesse verso. Entretanto, para que isso fosse verdadeiro, teríamos de chamar todos os outros pais da igreja de tradição grega não apenas de hereges, mas analfabetos.

D. Clemente de Alexandria

Nascido em Atenas por volta do ano 150, Clemente de Alexandria é reconhecido como escritor grego e teólogo além de fundador da escola de Teologia de Alexandria. É conhecido por unir, ou tentar unir a filosofia grega com as tradições cristãs. É também lembrado como Professor de Orígenes. Clemente teria morrido por volta de 215d.C.

Clemente de Alexandria cita duas vezes o texto de Jo.1.1 e em ambas a leitura é claramente “καὶ Θεὸς ἦν ὁ Λόγος”. Em sua obra “Exortação a Heathen” no primeiro capítulo ele diz:

“Você tem as promessas de Deus; você tem Seu Amor: tornou-se participante de Sua Graça. E não suponha que a música da salvação para ser nova como o vaso ou a casa é nova. Pois ‘antes da manhã estrela era’ e ‘no princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus’. O erro parece antigo, mas a verdade uma nova coisa”

A citação aqui é simples, mas como ele entendia a expressão e o Verbo era Deus: “Por que os dois são um – isto é Deus. Por isso ele diz ‘No princípio o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus’” (O Instrutor, Livro I, cap.8). A citação, provavelmente de memória aqui, é uma clara demonstração que para Clemente de Alexandria a leitura falava sobre a identificação do Verbo com o Deus Pai. Essa visão é de tal forma verdadeira que pouco à frente ele conclui que, pelo fato de o Pai ser amor, o Verbo também o é.

Embora, Clemente não nos acresça novas informações, é interessante notar que sua leitura era concordante com os outros Pais da Igreja. Portanto, é evidente que para ele o texto não fala sobre um outro deus à parte do Deus Pai.

E. Hipólito:

Hipólito nasceu por volta de 160 d.C em uma família nobre. Foi instruído teologicamente tornando-se forte defensor das doutrinas da Igreja. Foi presbítero em Roma, quando Zeferino era Papa (199-217). É considerado o primeiro Anti-papa, por opor-se a escolha de Calisto. Sua principal discordância com Calisto era relacionado ao perdão dos pecados para morte. Em função desse confronto, Hipólito suportou grande disciplina e se separou da Igreja por aproximadamente 20 anos. É reconhecido por sua produções teológicas e denominado Doutor da Igreja. Veio a falecer em 13 de Agosoto de 235. Sobre suas obras é importante dizer que, embora fosse de Roma, escreveu suas obras todas em grego, fato que o manteve em obscuro entre os seus contemporâneos ocidentais.

Hipólito não faz largas citações do Jo.1.1 como outros Pais da Igreja. Ele o faz apenas três vezes, e em uma delas, apesar de ser exatamente igual às muitas citações patrísticas, é usada em um contexto de pouca relevância para nosso estudo aqui (cf. Refutação a Todas as Heresias, Livro 5, Cap.11), muito embora seja coerente com a tradição grega do texto do Evangelho de João.

Entretanto, em duas citações podemos compreender como esse teólogo do fim do segundo século e início do terceiro compreendia o texto.

Hipólito escreveu um livro chamado Contra a Heresia de Noeto, que foi considerado o chefe dos Patripassionistas, grupo que negava a trindade. Essa ideologia também foi chamada de Modalismo, por afirmar que Deus teria uma substância indivisível, mas dividido em três atividades fundamentais, ou modos, manifestando-se sucessivamente como o Pai (criador e legislador), Filho (o redentor), e o Espírito Santo (o criador da vida, e a divina presença no homem).

No décimo segundo parágrafo dessa obra, Hipólito passa a demonstrar para Noeto que o Verbo teria sido feito manifesto entre os homens. E sobre o Verbo pergunta: “Quem o Pai enviou, e em quem Ele demonstrou o aos homens o poder procedente do Pai?” Para responder essa pergunta, Hipólito diz:

Ele [João] acresce às informações que os profetas haviam dito e demonstra que este é o Verbo, por meio de quem todas as coisas foram feitas. Sobre ele fala assim: ‘No princípio era o Verbo, o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e sem Ele nada do que foi feito se fez. E abaixo diz: ‘O mundo foi feito por intermédio dele, mas o mundo não o conheceu; veio para os que eram seus mas os seus não o receberam’

A exposição de Hipólito nesse caso fala sobre a manifestação histórica do Verbo, mas não é interessante a relação que ele apresenta sobre a relação do Pai e do Filho? Apesar de citar Jo.1.1 como a declaração da Divindade de Cristo, Jo.1.11 como sua manifestação histórica, ele compreende uma submissão do Filho para com o Pai a tal ponto que reconhece que Jesus Cristo demonstrava o poder do Pai aos homens. Tal visão, também é vista pelos unicistas modernos, mas eles interpretam Jo.1.1c com o acréscimo do artigo indefinido antes de Deus. Mas, Hipólito não entende assim.

É bom lembrar que, tal como Hipólito, grande parte dos teólogos ortodoxos dos nossos dias também reconhecem a submissão do Filho ao Pai, até por que Jesus Cristo é chamado de Filho, e em uma relação de Pai e Filho, é evidente que existe uma hierarquia. Mesmo Tertuliano entendia assim. Entretanto, Hipólito difere dos cristãos ortodoxos modernos, de Tertuliano e provavelmente dos unicistas quando diz no mesmo parágrafo: “Em conformidade com isso, Nós vemos e o Verbo encarnado, e por meio dele nós conhecemos o Pai, e nós acreditamos no Filho, e adoramos o Espírito Santo”.

A concepção da relação entre Pai, Filho e Espírito Santo para Hipólito não era ainda tão bem elaborada como vimos em outros Pais da Igreja. Para Hipólito, Deus era manifesto em duas Pessoas (Pai – Filho), mas acreditava em uma nova administração, ou até mesmo disposição, dessas pessoas chamada “a sua graça Espírito Santo” (cf. ver.14). As implicações disso ainda não são exatamente reconhecidas, mas o que podemos dizer é que isso é certamente diferente do que temos ouvido sobre a relação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Porém, é fundamental dizer que Hipólito era convicto da Divindade de Jesus Cristo. Uma das evidências nas escrituras que ele apresenta é a ocasião em que Pedro apresenta o evangelho para o Centurião Cornélio. Em sua citação comentada, Hipólito diz: “Deus enviou sua palavra aos filhos de Israel pela pregação de Jesus Cristo. Este é Deus e Senhor sobre todos” (At.10.36; cf. ver.14).

É bem possível que Hipólito aqui não estivesse transcrevendo uma informação de um documento, mas estivesse citando de memória um texto. Observe que ele não cita uma parte central do versículo: “anunciando a paz”, da mesma forma que acresce informações na parte final do texto: “Este é Deus”. Talvez a inclusão da palavra “Deus” no texto de Hipólito fosse uma tentativa de explicação do conceito de Senhor, mas sobre isso apenas podemos especular. Contudo, a citação como um todo deixa evidente que sua opinião sobre o Verbo é que ele era Deus. Não é à toa que pouco à frente ele diz:

“Todas essas coisas, irmãos, são declaradas pelas Escrituras. E o abençoado João no testemunho do seu evangelho, nos dá informações sobre essa economia e reconhece que o Verbo era Deus, quando diz: ‘No princípio era o Verbo, o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus’. Se, então, o Verbo estava com Deus e também era Deus, o que se conclui? Alguém poderia dizer que ele fala em dois deuses? Eu jamais falaria em dois deuses, mas em um, em duas Pessoas, entretanto.

Muito embora a visão de Hipólito sobre a Trindade, ou a relação entre suas Pessoas, não era tão bem definida, ele tem uma sólida convicção: Não se pode falar em dois deuses em Jo.1.1. Isso é significativo, pois encontramos na história da igreja alguém que é denominado Pai da Igreja, que tem opiniões pouco diferentes da ortodoxia em geral sobre um assunto importante, mas não consegue traduzir, ou mesmo interpretar Jo.1.1c como a evidência de um segundo deus.

Ou seja, essa é mais uma evidência de que a tradução, ou até mesmo interpretação, de Jo.1.1c como [um] deus não era vista em outras regiões do mundo.

F. Orígenes

Orígenes (185-254) é mais um dos doutores do cristianismo antigo e provavelmente o mais controverso Pai da Igreja. De uma exegese que tende à alegoria, de clara influência grega foi o primeiro a notar diferenças entre os manuscritos do Novo Testamento. É importantíssimo para a História da Teologia, pois suas obras abriram portas para os teólogos posteriores: Escreveu diversos comentários bíblicos, traduziu do Hebraico o Velho Testamento, escreveu um organizado manual de teologia, escreveu uma das obras mais fortes sobre a defesa da fé (Contra Celso), além da Hexapla uma versão comparativa em seis idiomas do VT.

Orígenes cita Jo.1.1 em diversas ocasiões, e por essa razão podemos dizer com certeza que lia o texto desse modo: “καὶ Θεὸς ἦν ὁ Λόγος”. Vamos observar como ele lia e interpretava Jo.1.1 em cada uma das Obras em que cita o referido texto.

De Principiis

Na obra chamada De Principiis Orígenes escreve uma ordenado relato da doutrina Cristã que incluía claras demonstrações de sua visão das escrituras (VT e NT), apresentado a Deus como o Criador, o Filho como Preexistente e a Divindade do Espírito Santo. É interessante que Orígenes escreve muito antes de Calcedônia, mas com declarações trinitárias muito bem definidas. É bem verdade que, em função dessa obra Orígenes tornou-se divergente da ortodoxia posterior tendo sido atacado, inclusive por outros Pais da Igreja (Jerônimo, Justino I).

Mas, no que refere-se à essa obra, Orígenes cita o verso duas vezes. A primeira ele fala sobre a realidade da criação dos seres racionais (corpóreos e incorpóreos). Quando fala sobre esse assunto diz:

“Todas as almas e naturezas racionais, seja santo ou caída, foram formadas ou criadas, e todas essas, de acordo com sua própria natureza são incorpóreas; mas, apesar de incorpórea, eles foram criados, por que todas as coias foram feiras por Deus por meio de Cristo, como João ensina de modo geral no seu Evangelho, dizendo: ‘No princípio era o Verbo, o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele mesmo estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se fez’.” (Livro I, Cap.7, v1)

No segundo livro dessa obra, no capítulo 9 ainda falando sobre esse assunto, Orígenes cita novamente Jo1.1. como evidência de que Cristo é o Criador. Entretanto, nessa citação ele associa dois outros textos: Cl.1.16 e Sl.104.24.

“Todas as coisas foram criadas, foram feitas por meio de Cristo e em Cristo, como o Apóstolo Paulo claramente indica quando fala: ‘nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele’ e como no Evangelho de João aponta para o mesmo fato, dizendo: ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. Ele mesmo estava no princípio com Deus e todas as coisas foram feitas por Ele e sem Ele nada do que foi feito se fez’ e como em Salmos também é escrito: ‘Em sabedoria Tu as fizeste’”

Nessa obra, esse é o contexto em que Orígenes cita Jo1.1. No que se refere a interpretação de Orígenes sobre a criação não temos do que discordar, aliás, outros Pais da Igreja já utilizaram esse texto com esses objetivos. Entretanto, o que fica claro para Orígenes é que o Filho não tem início: é preexistente. Ele é o criador de todas as coisas, visíveis e as invisíveis, ou como ele costuma chamar, corpóreas ou incorpóreas.

Contra Celso

A maior defesa do Cristianismo de uma heresia pagã acontece com Orígenes na Obra Contra Celso, escrito provavelmente no ano de 248. Parágrafo por parágrafo, Orígenes defende a verdadeira doutrina Contra Celso, a principal fonte dos acadêmicos para a visão anti-cristã desse período.

Nessa obra Orígenes cita nosso texto em duas ocasiões, embora em nenhuma delas a ênfase esteja sobre a divindade de Cristo. Na primeira citação (Livro 5, cap.24), Orígenes demonstra a identidade do Pai com o Filho, pois visa demonstrar que o Logos é a razão de todas as coisas:

“De acordo com Celso, Deus mesmo é a razão de todas as coisas, enquanto de acordo com nossa visão é o Filho que é, de quem nós falamos em linguagem filosófica ‘No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus’”

Na segunda citação (Livro 5, cap.65) a ênfase recai sobre aqui sobre a possibilidade do Deus Pai ser expresso em palavras. Sobre isso Orígenes diz”

“Eu também admito que Deus não é alcançado pelas palavras [logos]. Se, porém, nós atentarmos para a passagem ‘No princípio era o Verbo [Logos], e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus’ nós temos a opinião que Deus é alcançado por essa Palavra [Logos] e é compreendido não apenas por Ele, mas por qualquer um que Ele quiser revelar o Pai. E com isso provamos a falsidade da afirmação de Celso, quando diz: ‘Deus não pode ser alcançado por palavras’”

Muito embora Orígenes não tenha com essas citações trabalho com a idéia da expressão “e o Verbo era Deus”, fica claro que dispunha do texto e o usava em suas Obras.

Comentário ao Evangelho de João

Entre os muitos comentários que escreveu, Orígenes dedicou seus esforços para compreender o Evangelho de João. Nesse comentário, além de realizar a exegese do texto, ele o cita mais algumas vezes. Vamos olhá-lo com atenção.

No segundo livro dessa obra, no primeiro capítulo Orígenes diz:

“Ele é Deus, apenas por que Ele está com Deus. E provavelmente é assim pelo fato de que ele [João] viu tamanha ordem no Logos, que João não colocou a clausula ‘e o Verbo era Deus’ antes da setença ‘O Verbo estava com Deus’”

Para Orígenes a ordem das sentenças é fundamental. Ele chama de axioma cada uma das sentenças. Ou seja, o primeiro axioma fundamental é o fato de que o Verbo já existia no princípio. O segundo, que esse mesmo Verbo estava com Deus. Portanto, a conclusão é que o Verbo é Deus. Em sua conclusão, Orígenes diz: “É por isso que nós vemos o Verbo estando com Deus o faz Deus”.

Explicando o mesmo verso, pouco à frente Orígenes diz: “Na primeira premissa nós aprendemos onde o logos estava: Ele estava no princípio. Então nós aprendemos com quem Ele estava; com Deus. Depois nós aprendemos que Ele era: e Ele era Deus” (Livro 2, cap.4; cf. cap.5). Para Orígenes não há dúvidas de sua leitura do texto: Para Ele O Verbo é Deus.

A princípio não sabemos de onde Orígenes teria escrito esse comentário: Se em Alexandria onde passou grande parte de sua vida, ou em Cesaréia, para onde foi após um desentendimento com o Bispo Demétrio. Mas, é interessante que temos um escritor do fim do segundo século, início do terceiro educado em Alexandria (norte do Egito) e que defende veementemente a Divindade de Cristo no mesmo período em que o exemplar copta está em produção. A proximidade histórica e geográfica faz disso um excelente ponto de comparação, pois Orígenes, como todas as suas peculiaridades, está com a ortodoxia teológica nesse ponto em um local onde supostamente a tradução copta estava sendo realizada com uma visão bem diferente da sua (considerando que a suposta tradução de Landers esteja correta). Isso é mais uma evidência que aponta para a solidão da versão copta (se estiver sido bem traduzida).

G. Eusébio de Cesaréia:

Eusébio nasceu por volta do ano 260, mas ninguém sabe ao certo onde. Ele é conhecido como Eusébio “de Cesaréia”, não por ter nascido lá, mas porque foi bispo desta cidade. Ele é reconhecido por sua obra História Eclesiásticas, pois foi o primeiro a refletir e lançar luz sobre a história da igreja nos três primeiros séculos. Em 315 foi ordenado bispo de Cesaréia e durante esse período teria simpatizado dom a doutrina Ariana. Embora Eusébio não adotasse as idéias de Ário, mas a teria entendido incorretamente apenas, foi expulso de sua posição por Alexandre em 318, sob a acusação de negar a divindade de Cristo. No Sínodo de Antioquia foi excomungado sob acusação de ser arianista. Entretanto, no fim do mesmo ano, foi convocado por Constantino para se explicar no Concílio de Nicéia e teve suas punições suspensas pelo Imperador, ao defender a Divindade de Cristo, como veremos melhor à frente. Eusébio veio a falecer em 30 de Maio de 339.

Eusébio faz apenas duas citações de Jo.1.1, e em ambos contextos defende a visão ortodoxa das escrituras. O que se precisa dizer, dado o foco e objetivo desse trabalho, é que a leitura do texto que estamos a averiguar, também era conhecida na região da Cesaréia, de onde Eusébio escreve. Logo, ele teve acesso a um tipo de texto que serviu como base para suas obras, e nesse texto que lhe era disponível, como ele lia e entendida Jo.1.1? Abaixo, transcrevo suas considerações:

“Para aquele que está ao lado do Pai pode ser claramente entendido como a Luz que existe antes do mundo, a intelectual sabedoria intelectual que existe antes dos tempos, o Verbo vivo que estava no princípio com Deus e que era Deus, o primeiro e único gerado de Deus, que é antes de todas as criaturas, criação visível e invisível, o Mestre das hostes racionais e imortais do céu, o mensageiro do grande concílio, o executor da vontade não anunciada do Pai, o criador com o Pai de todas as coisas e segunda causa do universo depois do Pai, o verdadeiro e único gerado Filho de Deus, o Senhor, Deus e Rei de todas as coisas criadas, Aquele que recebeu o domínio e o poder, sendo ele mesmo divino, cuja força e poder procedem do Pai; como é dito a seu respeito na mística passagem das Escrituras que declara sua divindade: ‘No princípio era o Verbo, o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. (História Eclesiástica, Livro, Cap.2)

“Universal assim é a agência do Verbo de Deus: presente em todos os lugares, permeando todas as coisas pelo poder da sua inteligência, ele olha acima ao Seu Pai, e governa toda a criação abaixo, e inferior a ele, e conseqüente acima dele mesmo, de acordo com sua vontade, como o Preservador de todas as coisas. Intermediário, como se estivesse atraindo as coisas criadas à não criada Essência, esse Verbo de Deus existe como um laço inquebrável entre os dois, unindo coisas mais diferentes por um inseparável vínculo. Ele é a Providência que governa o universo, o guardião e diretor de Tudo: Ele é Poder e Sabedoria de Deus, o unigênito Deus, o Verbo gerado do próprio Deus. Por isso ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus’” (Oração de Eusébio Panfílio, Cap.12)

H. João Crisóstomo

João Crisóstomo nasceu em 347 em Antioquia, a segunda cidade mais importante do Ocidente no Império Romano nessa ocasião. É chamado Crisóstomo, não por um nome de família, mas por ser considerado muito eloqüente. A palavra grega “Χρυσόστομος” significa literalmente “boca de ouro” e provavelmente esse título teria sido atribuído a ele após sua morte.

João Crisóstomo já ultrapassa um pouco a data que temos em consideração nesse trabalho, entretanto, sua análise nesse texto merece nossa atenção. A leitura que Crisóstomo dispõe do texto é claramente “καὶ Θεὸς ἦν ὁ Λόγος” e ele apresenta essa leitura várias vezes. Na sua décima sexta homilia do Evangelho de Mateus, João Crisóstomo diz:

“Muitas vezes, tendo dito muitas coisas em Sua Pessoa sem muito falar sobre Ele mesmo, deixa as grandes coisas serem ditas por outros. No entanto, quando discutia com o judeus, Ele disse: ‘Antes de Abraão vir a ser, EU SOU’. Mas, seu discípulo não faz diferente: ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus”

Mas, ainda mais interessante que sua leitura do texto é sua exegese do mesmo. Em sua quarta homilia no Evangelho de João, ele se propõe a fazê-lo assim:

“‘Como’ alguém pode perguntar, ‘João defini um início por dizer: ‘No princípio era’? Me diga, você prestou atenção à expressão ‘No princípio’ e ao verbo ‘era’ e não entende a expressão ‘o Verbo era’? O que! Quando o profeta diz: ‘de eternidade a eternidade, tu és Deus’ ele diz isso para evidenciar Seus limites? Não, mas para declarar sua eternidade. Agora, considere que o caso aqui é semelhante. Ele não sua a expressão como definição de limites, por que ele não diz ‘teve um princípio’, mas ‘era no princípio’. Como a palavra ‘era’ o carrega à idéia de que o Filho não tem início. ‘Mas, observe’ ele diz ‘o Pai é nomeado com a adição de um artigo, mas o Filho sem ele’”

Aqui vemos a contribuição das citações de João Crisóstomo, pois ele observa que alguém teria visto o texto de Jo.1.1 e identificado a falta de artigo em referência ao Verbo quando usa o termo “Θεὸς”. As idéias aqui combatidas por João Crisóstomo são semelhantes aos que os arianos modernos costumam fazer. É como se a falta de artigo estivesse sugerindo que Cristo fosse menor que o próprio Deus. Mas, como João Crisóstomo entendia a falta de artigo? Observe:

“O que então, o apóstolo quis dizer quando disse: ‘O grande Deus e nosso Salvador Jesus Cristo’? E novamente ‘O que é sobre todos Deus’? É verdade que aqui ele menciona o Filho, sem artigo, mas ele faz o mesmo quando fala do Pai em sua epístola aos Filipenses: ‘sendo em forma de Deus, não julgou como roubo o ser igual a Deus’, e novamente [na epístola] aos Romanos: ‘Graça a vocês e paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo’. (…) Falando a respeito do Pai, ele diz: ‘Deus é Espírito’, e nós não negamos a Natureza Espiritual de Deus, apesar de que o artigo não está unido a ‘Espírito’; então, em função de que o artigo não é anexado ao Filho, o Filho não é apresentado como menos Deus”

É bem interessante que Crisóstomo, nem seu referido herege, teriam visto aqui uma outra divindade. Aliás, como o ataque de Crisóstomo consiste na defesa de que Cristo não é menos Deus que o Pai, podemos perceber que esse era o teor do ataque. É interessante que não se fala em um outro deus, mas no Filho sendo Inferior ao Pai. Mas, por que isso? Crisóstomo responde:

“Por que dizer ‘Deus’ e novamente ‘Deus’, ele não nos revela nenhuma diferença em sua Divindade, mas ao contrário; por ter dito ‘e o Verbo era Deus’ ninguém pode supor que a Divindade do Filho é inferior, pois ele imediatamente adiciona características da verdadeira Divindade, incluindo Eternidade (por que Ele era no princípio com Deus, ele diz) e atribui a Ele o ofício de Criador: ‘por meio dele todas as coisas foram feitas e sem Ele nada do que foi feito se fez”

Ou seja, para Crisóstomo, a falta de artigo não pode demonstrar a inferioridade de Cristo a Deus Pai por duas razões:

(1)   Gramaticalmente não é incomum encontrar situações em que Deus é apresentado sem artigo e nem por isso o autor quer dizer que Ele é menor. É também comum encontrar características de Deus apresentadas sem artigo sem que isso implicasse na falta da totalidade da atribuição qualitativa. Esse é o caso da sentença “πνεῦμα ὁ Θεός” (Deus é Espírito), onde ninguém procura negar a Natureza Espiritual de Deus muito embora temos a falta de artigo em “πνεῦμα” (Espírito).

(2)   Contextualmente João acresce informações que o identificam claramente com Deus Pai. Ele cita duas ocasiões: Em primeiro lugar ele é Eterno, pois ele já era no princípio e não veio a ser criado. Em segundo lugar, ele mesmo é o Criador.

Portanto é evidente na mente de João Crisóstomo que não se pode falar em inferioridade de Cristo em relação ao Pai, no sentido de ser menos Deus. Mas, ainda mais interessante é que João não se contrapõe a idéia de um outro deus em Jo.1.1. Ainda que comentasse sobre a falta do artigo, ele, nem seu herege opositor, teria encontrado aqui a evidência de uma segunda divindade. E falando ainda sobre a falta de artigo, em seu comentário à Epístola de Gálatas, no primeiro capítulo ele diz:

“Aqui, novamente, está uma clara refutação dos hereges que afirmam que João no início do seu Evangelho, onde ele diz: ‘e o Verbo era Deus’ usa a palavra ‘Θεὸς’ sem artigo para defender a inferioridade da Divindade do Filho; e o que Paulo não menciona o Pai quando ele diz que o Filho era ‘forma de Deus’ por que a palavra ‘Θεὸς’ estava sem artigo. Mas, o que eles conseguem dizer aqui, quando Paulo fala ‘καὶ Θεοῦ πατρὸς’ e não ‘καὶ τοῦ Θεοῦ πατρὸς’?”

O que João Crisóstomo afirma com isso? É que se a ausência de artigo é evidência para inferioridade de Cristo, a Teologia no Novo Testamento deve reinterpretar todas as ocasiões em que Deus é apresentado sem artigo, ou ocasiões que descrições da pessoa de Deus fossem apresentadas sem artigo, o que não faz sentido, nem para Crisóstomo nem para nós.

O que se conclui da análise exegética de Crisóstomo? Que, embora os hereges vissem a inferioridade de Cristo para com o Pai, não poderiam ter encontrado outra divindade à parte de Deus Pai; e que, a leitura do texto com um todo demonstra exatamente o oposto, pois o Verbo recebe atributos da Divindade do Pai, sem contar nas outras ocasiões onde é claramente apresentado como Deus.

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Para citações exaustivas dos Pais da Igreja antes do século V, ver:

Como os Pais da Igreja citam Jo.1.1?

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Bom, depois de tantas citações, que até seguem um determinado padrão, é importante perceber que nenhum dos Pais da Igreja citados fazem qualquer menção da possibilidade de que a leitura do texto deveria acrescer o artigo indefinido [um] antes de Deus. É interessante notar que mesmo quando combatem os “hereges”, não mencionam que alguém teria ousado entender o texto com acréscimo de um artigo na tradução ou interpretação.

Ao contrário, em seus comentários eles evidenciam que a compreensão do texto era muito próxima da forma como nós o temos compreendido. É bem verdade que algumas das definições já não são exatamente como as nossas, mas evidencia-se a manutenção da doutrina ortodoxa das escrituras em suas citações. Além disso, temos que considerar que pais da igreja supracitados são falantes do grego koinê escrevendo na língua que conhecem, mas nenhum deles ousou usar o texto de Jo.1.1 como evidência da não divindade real de Jesus Cristo, ou do absurdo de chamá-lo outro deus. Muito pelo contrário, o texto é normalmente utilizado para justamente evidenciar sua Divindade e Igualdade com Deus. Isso é significativo.

Por isso é bem importante demonstrar que, para que a tradução da TNM de Jo.1.1 ou da suposta tradução da versão copta ser aceitável, é necessário que todos os Pais da Igreja estejam equivocados[1]. Portanto, se a suposta tradução da versão copta saídica citada está correta (o que temos algumas razões para duvidar) ela não me parece evidência suficiente para suportar o que pretendem os defensores da TNM.

 

Conclusão

Quando nós colocamos as versões coptas dentro do cenário da histórica textual do Novo Testamento podemos dizer com certeza que ela é uma parte de um todo muito rico. Por isso, suprimir todas as outras evidências para exaltar uma única leitura que parece suportar uma opinião teológica, não parece nem um pouco adequado. Aliás, isso mostrou-se incorreto.

Se as versões coptas fossem as mais importantes leituras (que não são), ou as mais antigas (que não são) ou as que representassem melhor a tradução do grego neotestamentário (que também não são) ainda estariam sujeitas à análises de caráter geográfico. A análise do ponto da vista da geografia visa compreender como determinada leitura ou tradução era encontrada no mundo antigo. Caso fosse uma leitura sem representatividade em outras regiões demonstrar-se-ia que tal leitura não era familiar a outras regiões do mundo. Isso inevitavelmente ou iria colocar todo o resto do mundo antigo desprovido da verdade, ou nos faria pensar que a mesma era a leitura equivocada.

Porém, deve-se dizer que isso seria aplicado caso a tradução das versões coptas fossem realmente problemáticas. Mas, será que elas podem ser assim definidas? Por isso, abaixo passamos a observar a tradução da versão copta saídica.

PRÓXIMO


[1] Alguns comentaristas Testemunhas de Jeová tem dito exatamente isso. Hal Flemings, que se propõe a evidenciar isso com detalhes na interpretação da trindade nos pais da igreja, diz: “Antes de considerarmos isso com detalhes, vamos primeiro estabelecer que o sistema de corrupção dos primeiros anos da igreja foi predito pelas escrituras gregas. O apóstolo Pedro escreveu seu aviso por volta de 62 da E.C. [era comum= d.C.]: “No passado surgiram falsos profetas no meio do povo, como também surgirão entre vocês falsos mestres. Estes introduzirão secretamente heresias destruidoras, chegando a negar o Soberano que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição. uitos seguirão os caminhos vergonhosos desses homens e, por causa deles, será difamado o caminho da verdade. Em sua cobiça, tais mestres os explorarão com histórias que inventaram. Há muito tempo a sua condenação paira sobre eles, e a sua destruição não tarda” (2Pe.2.1-3)” (FLEMINGS, Hal, Examining the Doctrines of the Trinity and the Person of Jesus Christ in the Eyes of the Apostolic and Ante-Nicene Father). É bem verdade que eu mesmo usaria esse verso em referência a Flemings.

Um comentário em “Como os Pais Gregos da Igreja citam e interpretam Jo.1.1?

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