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ESBOÇO DO ARTIGO COMPLETO:

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Marcelo Berti

Na introdução do The New Testament in the original greek de Westcott e Hort, Philip Schaff nos lembra que além de Tertulino, podem servir como fonte para a Antiga Latina os seguintes Pais da Igreja: Cipriano, Lúcifer de Cagliari, Hilário de Poiteirs, Ambrosiaster, Ambrósio, Vitorino, Jerônimo, Rufino, Agostinho e Pelágio. (SCHAFF, Philip, Introduction to the New Testament in the Original Greek. Pp. xl).

Muitos são os Pais da Igreja de grafia latina que citam Jo.1.1, mas em nosso estudo vamos considerar apenas alguns dos que citam o texto até o quarto século, em função de comparação com o exemplar copta em questão (para uma lista completa dos autores latinos em citação de Jo.1.1, ver o artigo: Como os pais da Igreja citaram Jo.1.1?. Para as opiniões de Agostinho, ver o artigo: Como Agostinho lia e interpretava Jo.1.1?).

A. Tertuliano:

A leitura de pais da igreja de tradição latina é fundamental, pois além de descobrirmos que leituras dispunham, ou como traduziam o texto, eles também deixam suas impressões sobre a verdade exposta nos textos.

Tertuliano nasceu em Cartago (norte do Egito) por volta de 150 e 155 d.C., estudou Direito e exerceu a profissão em Roma. Tinha o domínio da língua grega e possuía grande erudição em filosofia e história. Entre os anos 190 e 195 d.C. converteu-se ao cristianismo provavelmente em Roma, e passou a dedicar-se ao estudo da literatura cristã. Pouco tempo depois voltou a Cartago, onde foi ordenado presbítero e lá viveu até a sua morte que ocorreu entre os anos 222 e 225 d.C. Entre vários outros acontecimentos em sua vida, merece destaque que ao fim de sua vida Tertuliano teria se simpatizado com o Montanismo, por seu zelo ascético.

Sobre Tertuliano, uma informação inicial é importante: Ele provavelmente traduziu todas as suas citações do grego para o latim, idioma que também tem a peculiaridade da falta de artigo indefinido. Entretanto, é digno de nota que, em nenhum comentário Tertuliano teria considerado Jesus Cristo como um deus à parte do Deus Pai, muito pelo contrário, ele é um grande defensor do inverso. Ou seja, embora o idioma não tivesse artigo indefinido, ele poderia compreender uma sentença com esse sentido em ambos os idiomas. Mas, esse fato nunca ocorreu com Jo.1.1.

Tertuliano cita e interpreta Jo.1.1 sob basicamente dois pontos de vista: da Criação e da Declaração da Divindade de Cristo. Quando fala da Criação, é comum Tertuliano levantar uma identidade de Cristo com o Deus, o Pai. No capítulo 20 de sua obra contra Hegémones, Tertuliano trata de demonstrar como o Pai é o responsável pela criação, em referência ao texto de Genesis 1.1. E quanto a isso, ele não tem dúvidas.

Entretanto, ele reconhece que essas não são as únicas informações que dispõe para falar sobre o assunto, e afirma: “Concluindo, eu vou aplicar o Evangelho como um testemunho complementar ao Antigo Testamento[1]”. Nessa ocasião, Tertuliano cita Jo.1.1-2, nas seguintes palavras: “‘No princípio era o Verbo’ – isto é, no mesmo início, claro, em que Deus fez os céus e a terra – ‘e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Todas as cosias foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se fez”.

A nota que Tertuliano faz ao texto é uma clara demonstração da sua visão da Identidade do Filho com o Pai. É válido acrescentar que um falante de grego koine em tradução para o latim, não pode ler ou interpretar o texto como a suposta leitura do exemplar copta.

Contra Práxeas, Tertuliano também apresenta sua visão de Identidade do Filho com o Pai. No capítulo 27 de sua obra intitulada Contra Práxeas, Tertuliano estende sua visão ao apresentar não apenas a estreita ligação entre o Pai e o Filho, mas também demonstra sua pré-existência:

no preâmbulo de João em seu Evangelho, ele nos demonstra o que Ele existia antes de ser feito carne: ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus’ Ele estava no princípio com Deus ‘e ‘todas as coisas foram feitas por Ele e sem Ele nada do que foi feito se fez’. Agora, como essas palavras não podem ser tomadas de outra forma além da que foram escritas, foi demonstrado, sem dúvidas, que existe Um que existe desde o princípio, e Um com quem Ele estava: um é o Verbo de Deus, o outro Deus e o Verbo também é Deus, mas Deus como o Filho e não como o Pai

Essa conexão que Tertuliano faz entre Deus, o Pai e Jesus, o Deus Filho é, segundo ele, bem apresentada nas escrituras e não deveriam ser entendidas de outra forma. Deve ser por isso, que em sua Obra Ressurreição da Carne, no capítulo 6, essa identidade é levada a uma compreensão bem interessante de Gênesis 1: “Por que o Pai disse anteriormente ao Filho: Façamos o homem em nossa própria Imagem, e em nossa Semelhança”. Para Tertuliano, a relação de igualdade entre o Filho e o Pai era tão acertada que entende que o plural encontrado no verbo “fazer” em Gênesis, expressa um diálogo entre os dois. Novamente, para defender sua opinião ele cita Jo.1.1 como defesa dessa identidade e acresce um verso também interessante: “E o Verbo também era Deus sendo também a imagem de Deus ‘não julgou como roubo o ser igual a Deus’”.

Essa conexão entre Jo.1.1 e Fp.2.6 é bem interessante, pois para Tertuliano, a expressão “τὸ εἶναι ἴσα Θεῷ” (o ser igual a Deus) era identificada com “καὶ Θεὸς ἦν ὁ Λόγος” (e o verbo era Deus). Conexão que fez em outras ocasiões. Contra Práxeas, no capítulo 7 ele diz:

“‘O Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus’. Também está escrito: ‘Não tome o nome de Deus em vão’. O que é certo é que ele é quem ‘sendo forma de Deus, não julgou roubo o ser igual com Deus

Entretanto, Tertuliano apresenta outras conexões textuais quando fala da Divindade de Cristo. Para ele é claro que Jo.1.1 fala claramente sobre o assunto, mas ele também evidencia que isto está em acordo com as Escrituras. No capítulo 13 de sua obra Contra Práxeas, ao comentar sobre a Trindade diz:

Isto é um uma grande declaração, que você irá encontrar expressamente no Evangelho: ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus’.Havia Um ‘que era’ e outro com quem ‘estava’ e era. Mas, eu encontro nas Escrituras o nome SENHOR [Κύριος] também aplicado a ambos: ‘O Senhor disse ao meu Senhor assenta-te à minha direita’

Aqui Tertuliano faz a aplicação do Sl.109.1 à pessoa de Cristo, tal como o próprio Cristo teria feito segundo o relado dos evangelhos sinóticos (Mt.22.44; Mc.12.36; Lc.20.42) ou mesmo Pedro teria feito em sua primeira pregação em Atos (At.2.34). Ou seja, Tertuliano não está inovando, ele está seguindo aquilo que as escrituras o haviam ensinado. Só existe uma forma para se compreender como o Filho de Davi, o Cristo, poderia ser Senhor de Davi: Sendo Ele mesmo Deus. Assim, é claro para Tertuliano que existia o Deus Pai e o Deus Filho. Mas, será que Tertuliano entendia isso como existindo dois deuses? É evidente que não. Observe sua declaração no capítulo 12 de sua obra Contra Práxeas:

Agora, se Ele [o Verbo] também é Deus, de acordo com João que diz: ‘e o verbo era Deus’ então você tem dois Seres – Um que comanda às coisas à existência, e Outro que executa a ordem e cria. Nesse sentido, entretanto, você deveria entendê-lo como sendo outro no sentido de Personalidade, não em substância- em distinção não em divisão, como já expliquei.

Há ainda mais uma ocasião em que Tertuliano cita Jo.1.1 que merece nossa atenção. No capítulo 27 da obra Contra Práxeas, Tertuliano faz uma declaração sobre a Cristologia que viria a ser definida dois séculos mais tarde em Constantinopla. Nessa declaração ele afirma a União Hipostática da Pessoa de Cristo, observe:

Nem a carne tornou-se espírito, nem o espírito tornou-se carne. Em uma pessoa não existe dúvidas de que é possível coexistirem. Assim, Jesus consiste – Homem no que se refere a carne; e no que se refere ao Espírito, Deus – e o anjo o designa como ‘Filho de Deus’ em respeito à sua natureza, que era em Espírito, reservando para a carne a afirmação ‘Filho do Homem’. De igual modo, o apóstolo o chama de ‘Mediador entre Deus e os Homens’ e afirma sua participação em ambas as substâncias. Agora, para encerrar o assunto, você que acredita que o Filho de Deus é carne, nos demonstre o que Filho do Homem significa? Será ele então, quero saber, o Espírito? Mas você insiste que o Pai mesmo é o Espírito, no que se refere a ‘Deus é Espírito’, como se nós não lêssemos que existe um ‘Espírito de Deus’. Do mesmo modo como encontramos ‘e o Verbo era Deus’ também encontramos o Verbo de Deus

Na visão de Tertuliano fica evidente que texto lia: “e o Verbo era Deus”. Como poderia um leitor de grego e latim, em tradução e comentários, não considerar outra possibilidade para o texto? Talvez por que não houvesse outra possibilidade.

Vale a pena dizer, que para Tertuliano, Práxeas era alguém desprovido da verdade e que merecia ser respondido com a verdade das Escrituras. Entretanto, nem Práxeas parece usar Jo.1.1 para defender suas opiniões sobre Cristo. É válido dizer que a interpretação (não tradução) de que o Jo.1.1 fala de um outro deus seria primordial para Práxeas defender suas opiniões, mas o fato de que não o faz, sugere que nem mesmo ele poderia traduzir, ou até mesmo interpretar, o texto dessa maneira.

Como poderiam dois leitores do grego koinê, de posições antagônicas, não entenderem que a sentença exigia uma indefinição em relação a Deus em Jo.1.1? Simples, por que a sentença não tinha esse sentido, nem no grego que liam, nem no latim que escreviam, nem na forma como entendiam o texto, ou na forma como o explicavam.

B. Vitorino:

Vitorino nasceu provavelmente na Grécia (há quem defenda Pettau) em  270 e foi martirizado no período de Diocleciano em 303. Ele foi bispo da cidade de Pettau e por isso é eventualmente reconhecido como Vitorino de Pettau. Em função do seu caráter militar, Vitorino falava grego melhor que latim, mas foi o primeiro Pai da Igreja a realizar exegese no latim. Jerônimo nos diz que Vitorino teria escrito vários comentários bíblico além de livros contra as heresias do seu tempo. Entretanto, todos os seus materiais foram perdidos na história da Igreja e sobreviveram apenas partes das obras sobre Gênesis e Apocalipse.

Interessantemente, Vitorino faz uma citação de Jo.1.1 em cada documento. No documento reconhecido como “Sobre a Criação do Mundo” Vitorino diz:

“Mas, o autor de toda a criação é Jesus. Seu nome é o Verbo (…) João, o evangelista diz: ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus’”

No oitavo capítulo do quarto livro da obra “Comentário sobre Apocalipse” Vitorino faz uma comparação entre os inícios dos evangelhos e apresenta uma figura que poderia representar cada um deles. Quando fala sobre o quarto evangelho ele diz: “Mas, João, que ele inicia, diz: ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus’”.

Em Vitorino não vemos nenhum comentário elucidativo sobre as implicações desse texto, exceto que chama o Verbo de “nosso Senhor Jesus Cristo” como indicativo de sua divindade. O que se ressalta com Vitorino é que, do que restou do seu material, temos a impressão de que sua leitura e interpretação segue a tradição ortodoxa latina.

C. Hilário de Poitiers:

Hilário nasceu no fim do terceiro século em uma família pagã e foi educado em filosofia e retórica. Três anos após sua conversão foi eleito bispo da cidade de Poitiers pelo povo da cidade, mesmo sendo casado. Hilário foi chamado de Doutor da Igreja em função de sua luta contra o Arianismo, e por isso foi também chamado de “malleus arianoru” (martelo contra os arianos) e de Atanásio do Oeste.

Dos Pais da Igreja anteriores ao quarto século, Hilário é sem sombra de dúvidas o que mais citou ou aludiu o texto de Jo.1.1: Ele o faz ao menos onze vezes. Suas citações acontecem em duas de suas obras: Sobre os Concílios na qual apresenta um aparato histórico da confissão da Igreja Ocidental com suas opiniões pessoais e Sobre a Trindade que defende a fé trinitária dos ataques arianos.

Sobre os Concílios

No décimo capítulo da obra “Sobre os Concílios”, Hilário cita uma definição cristológica da Igreja:

“E se alguém admite que Deus tornou-se Pai do Filho Unigênito em algum ponto do tempo e não que o Filho Unigênito veio à existência antes de todas as eras e além de toda capacidade de calculo humano; por contrapor-se ao ensino do Evangelho que exclui qualquer intervalo de tempo entre o ser do Pai e do Filho e fielmente nos instrui que ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus’ seja considerado anátema

A citação desse conceito cristológico nos diz muito sobre a posição teológica da região da Gália no fim do terceiro século e início do quarto. É bem verdade que o progresso da compreensão da Trindade desde os apóstolos cresceu vertiginosamente após Tertuliano no fim do segundo início do terceiro, mas o conceito Cristológico encontrado aqui é deveras rico.

Essa declaração é forte e clara e diz respeito aos que tentam inserir o Filho no Tempo, ou àqueles que ainda que não saibam como ou quando tentam afirmar que o Filho faria parte da criação de Deus. Segundo essa afirmação conciliar, tal afirmação contradiz o Evangelho e deve ser considerada anátema.

Ou seja, Jo.1.1 é utilizado para demonstrar que a frase “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus” é evidência de que não existe tempo em que o Verbo não existia, que jamais existiu intervalo de tempo entre o Pai e o Filho. Logo, afirmar que o Verbo teria sido criado era uma perversão da verdade, anátema, maldição.

Em seu comentário à essa leitura conciliar, falando sobre o Filho Hilário diz:

“Ele não delimitado pelo tempo, por que o eterno e infinito Deus não pode ser entendido como se torna-se Pai no tempo, e de acordo com o ensino do evangelho o Deus Unigênito, o Verbo é reconhecido ainda no princípio com Deus antes de ser nascido”(v.24)

Pouco à frente, Hilário demonstra que sua compreensão do Verbo como Deus é inegociável, pois é sustentada pelas escrituras:

“Ele [Senhor Jesus Cristo], Seu Filho Unigênito, Deus acima de todas as cosias, gerado do Pai, Deus de Deus, todo Deus do todo Deus, único do único, perfeito Deus do perfeito Deus, Rei do Rei, Senhor do Senhor, o Verbo, a Sabedoria, a Vida, a Verdadeira Luz, o Verdadeiro Caminho, a Ressurreição, o Pastor, a Porta, incapaz de mudar ou alterar, a não variável imagem da essência, poder e glória do Deus Pai, o Primogênito de toda a Criação, que estava no princípio com Deus, o Verbo de Deus, de acordo com o que é dito no evangelho ‘e o Verbo era Deus’ por meio de quem todas as coisas vieram a existir, em quem todas as coisas subsistem”(cap.XII,12; cf. XXVII, 70)

Hipólito nessa sentença demonstra suas credenciais ortodoxas de tal modo que não ousa apresentar Jesus Cristo como à parte de Deus, verdade anuncia desde os apóstolos. E, de modo bem interessante ele fundamenta sua opinião em Jo.1.1, que os arianos modernos insistem em afirmar uma leitura contrária à aquela estabelecida pelo autor. Hipólito está em acordo como os outros Pais de tradição latina de que o ensino apostólico é assim anunciado e deveria ser assim compreendido.

Sobre a Trindade

Uma das características interessantes de Hilário era seu apreço pelas Escrituras, no início de sua Obra intitulada “Sobre a Trindade” ele diz: “Eu mantenho uma firme convicção e devota lealdade à verdade concernente a Deus” (Livro 1, 10). A sua preocupação, como a dos ortodoxos, era defender o que as escrituras ensinavam, especialmente no que fosse referente a Deus. Por essa razão, Hilário demonstrava seu apreço ao Velho e Novo Testamento, como sendo a expressão verbal de Deus. E sobre isso e em referência à Pessoa de Cristo, Hilário diz pouco à frente: “Em adição ao conhecimento e dos ensinos da Lei e dos Profetas, aprende-se as verdades ensinadas pelo Apóstolo no evangelho: ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. Ele mesmo estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por meio Dele e sem Ele nada foi feito”.

Não diferente de outros Pais da Igreja, Hilário também comenta sobre a questão da criação. No quarto livro dessa obra, Hilário descreve a criação e demonstra que Cristo é o instrumento de Deus para a Criação:

Por que todas as coisas, diz o Profeta, vieram a existência do nada; não foi uma transformação de coisas existentes, mas a criação em uma perfeita forma a partir do não-existente. Por meio de quem? Ouça o Evangelista: todas as coisas foram feitas por meio Dele. Se você pergunta QUEM é esse, o mesmo evangelista poderá te dizer: ‘No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus e todas as coisas foram feitas por meio Dele” (Livro 4, 16)

Como exegeta, Hilário além de apresentar suas idéias, ele também se esmera por demonstrar a correta compreensão do texto que está a ler. Considerando isso, veja como responde a uma suposta leitura de Jo.1.1:

“Mesmo o seu ouvido sem prática falha em compreender a primeira clausula ‘No princípio era o Verbo’, por que sofrer com a próxima: ‘e o Verbo estava com Deus’? Foi isso que você ouviu ‘e o Verbo estava em Deus’ –uma afirmação de uma profunda filosofia? Ou será que o seu dialeto provincial não consegue distinguir entre ‘em’ e ‘com’? A leitura certa é que Aquele que estava no princípio estava com, não estava no, Outro. Mas, não vou discutir do início da sentença, pois a seqüência pode cuidar disso sozinha. Ouça agora o status e o nome do Verbo: ‘e o Verbo era Deus’. Sua acusação de que o Verbo é o som de uma voz, a profundidade de um raciocínio cai por terra. Pois o Verbo é Real, não um som, um Ser, não uma fala, Deus, não uma entidade sem importância” (Livro 2, 15)

Falando um pouco mais sobre a sentença “estava no princípio com Deus”, Hilário acresce:

“Ele continua: ‘Ele estava no princípio com Deus’. O fato de que Ele estava no princípio remove os limites do tempo e a palavra ‘Deus’ demonstra que ele é mais que uma voz. Que Ele estava com Deus prova que ele não ultrapassa nem é ultrapassado, pois sua identidade não é engolida pelo Outro, e Ele é claramente apresentado como presente com o Único não gerado Deus, como Deus, o único Unigênito de Deus”(Livro 2, 16)

Para Hilário o conceito auferido pelo verbo no passado na primeira sentença de Jo.1.1 também é sem definição temporal. Aliás, ele entende que o Filho é Filho desde sempre, e o raciocínio para isso é simples:

Uma vez que o Filho é o Verbo, e o verbo foi feito carne, era Deus e estava no princípio com Deus, então o Verbo era Filho desde antes da fundação do mundo” (Livro 3, 16)

Mas, a mais interessante citação de Hilário é encontrada no Livro 7, capítulo 11. Nessa sitação ele praticamente responde uma das afirmações arianas modernas sobre Cristo. Observe:

“Quando eu escuto as palavras ‘e o Verbo era Deus’ elas não meramente me contam que o Filho é chamado Deus; elas revelam ao meu entendimento que Ele é Deus. E naquelas ocasiões anteriores, quando Moisés é chamado deus e outros são caracterizados deuses, ali há uma mera adição de um nome como um título. Entretanto, aqui uma verdade essencial é afirmada: O Verbo era Deus. Isso indica que isso não era um título, mas uma eterna realidade, elemento permanente de Sua Existência que é inerente ao Seu caráter e natureza”

Não é necessário que se demonstre mais do pensamento de Hilário: Ele é um ortodoxo (cf. Livro 2, 23 e Livro 7, 9). Mas, o mais interessante é que já em sua época e lugar, existiam os que queriam destruir o sentido do texto de Jo.1.1. Muito embora, essas tentativas seguiam algumas leituras claramente equivocadas, como a confusão entre ‘em’ e ‘com’, nós também encontramos a idéia de que era possível que a sentença ‘e o Verbo era Deus’ trata-se mais de um título que uma verdade. O que se quer com isso é destronar o Senhor e Criador de todas as coisas da Sua posição exaltada, conforme João a apresenta.

Contudo, é significativo que até aqui, não vimos, nem nos hereges, a tentativa de nominá-lo um deus à parte do Deus Pai. Novamente, nota-se que, muito embora fosse pertinente às heresias combatidas por Hilário, os hereges a quem responde não teriam entendido o texto assim.

D. Ambrósio:

O último pai da Igreja de tradição latina que vamos observar é Ambrósio (339-397). É fato que Ambrósio nasceu após Nicéia, mas no que se refere a Ambrósio estamos pensando do ponto de vista geográfico, pois ele é o primeiro pai da igreja de tradição latina a escrever da região romana. O que vale aqui em nossa consideração é que ele atua ainda no quarto século, quando a versão copta estava em produção ou em início de uso.

Ambrósio foi o primeiro Pai da Igreja de tradição latina a nascer em um lar cristão. Ele nasceu 339 em Aurélio at Trier. Foi treinado em retórica, lei e foi preparado em Grego e com 30 anos já era governador das províncias do norte da Itália. Como governador, Ambrósio foi até Milão resolver problemas entre católicos e arianos após a morte de Ário. Um fato interessante nessa situação é que ele foi proclamado Bispo de Milão por ambos os lados da disputa. Entretanto, a História da Igreja o reconhece como o campeão da ortodoxia, pois reafirmou as convicções nicenas em seus escritos e escreveu várias obras contra a heresia ariana.  Ambrósio foi o primeiro Pai da Igreja a romper com o forte legalismo que assolava a fé cristã, muito embora, teria sido Agostinho, que foi batizado por Ambrósio, que teria feito da graça tema do evangelho na teologia ocidental.

Ambrósio cita Jo.1.1 cinco vezes e em todas são em contexto de defesa da Pessoa de Cristo. Porém, um detalhe interessante é que ele mostra-se preocupado com a forma verbal do verbo ser usado três vezes no texto. Em sua obra Sobre a Fé Cristã, no livro 1 cap.8, 56 após apresentar o verbo “era” em Jo.1.1 ele diz: “Novamente João, em sua epístola, diz: ‘O que era desde o princípio’. A extensão desse ‘era’ é infinito” (cf. Livro 1, cap. 19, 123).

É por isso que pouco à frente ele reconhece: “Agora com essa pequena passagem nosso pescador impede o caminho de todas as heresias” (Sobre a Fé Cristã, Livro 1, cap.8,57). Observe que para cada parte dessa sentença, Ambrósio demonstra que um herege é silenciado:

“Para aquele que ‘era desde o princípio’ não é compreendido no tempo e não é precedido por nenhum início. Que Ário descance em paz. Mas, aquele que ‘estava com Deus’ não é confundindo ou fundido com Ele, mas é distinguido pela perfeição imaculada que o Verbo está com Deus; e que Sabélio continue em silêncio. E ‘o verbo era Deus’. Esse Verbo, portanto, consiste não em apenas em linguagem formal, mas em designação de excelência celestial, e o ensino de Photinus está refutado. Além disso, pelo fato de que ‘Ele estava no princípio com Deus’ prova sua indivisível unidade do eterno Deus no Pai e Filho, para a vergonha e confusão de Eunomius” (cf. Livro 2, Cap.2, 29)

Esse tipo de uso do texto com pequenos comentários, acontece novamente sob outro foco:

“É dito sobre o bom Verbo do Pai ‘No princípio’ – aqui nós temos sua eternidade. E, é dito, ‘o Verbo estava com Deus’. Aqui você tem Seu Poder, não dividido e inseparável do Pai. ‘E o Verbo era Deus’. Aqui você tem Sua não gerada Divindade(Livro 3, Cap.1, 2)

O que é claro é que Ambrósio lia o texto do seguinte modo: “e o Verbo era Deus”. É importante notar que nenhum Pai da Igreja de tradição latina jamais leu o texto de outra forma. Será que eram desonestos ou não sabiam grego? Acredito que não. A evidência é generalizada demais para que se diga que todos erraram ou foram todos faltosos.

Assim, com Ambrósio já na segunda metade do quarto século, encerramos nossa análise dos Pais da Igreja de Tradição latina com a seguinte visão: A leitura, tradução e interpretação dos pais que liam grego e escreviam em latim, ou liam em latim e escreviam em latim é que “o Verbo era Deus”.

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Essas evidências nos trazem à luz aquilo que os defensores da “suposta” tradução da versão copta para Jo.1.1c não mencionaram (ou por intenção ou desinformação) para defender suas próprias convicções. Com mais informações sobre o assunto podemos ter uma visão mais próxima da realidade da tradição cristã nos primeiros séculos.

Entretanto, deve-se dizer que a tradição latina não é única no que refere-se aos Pais da Igreja: Existem também uma tradição síria. Seguindo a existência de versões sírias tão antigas não era de se alarmar que existissem teólogos que ensinassem em seu idioma. Por isso, abaixo passamos a considerar a tradição síria dos Pais da Igreja.

PRÓXIMO


[1] Vale ressaltar que todas as ênfases são do autor do artigo, salvo indicação.

2 comentários em “Como os Pais Latinos da Igreja citam e interpretam Jo.1.1?

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